Três vezes o caminho de Compostela – Parte I – Por Márcia Pavarini
Ao longo de vários anos, Marcia Pavarini percorreu 167 países e territórios, em todos os continentes, passando por lugares inusitados, situações dramáticas e por vezes hilariantes. Hospedou-se nos mais simples e rudimentares Templos Tibetanos ao pé do Himalaia; visitou remotas tribos perdidas no tempo; presenciou rituais em Ilhas quase desconhecidas; deslizou sobre trenós, no Ártico, na pista dos ursos polares. Participou de uma expedição à Antártica onde visitou as centenárias cabanas dos primeiros exploradores da região, mergulhou na África do Sul para apreciar os tubarões brancos de dentro de uma jaula; participou de vários safáris fotográficos pela África e muito mais, registrando cada viagem em diários. No entanto, sua experiência mais marcante foi durante o período em que morou no Iraque, convivendo com as atrocidades da guerra com o Irã, com a angústia do auto flagelo da população e o drama da auto mutilação dos jovens iraquianos para evitar o alistamento no exército militar. Marcia Pavarini divide aqui, suas experiências com os internautas do Portal na coluna “Diário das mil e uma viagens”. Experiência de vida ou apenas caminho de provação. Marcia Pavarini tinha estas dúvidas. E, sem querer acabou fazendo o Caminho de Santiago de três maneiras diferentes. O diário a seguir relata toda a experiência ao cumprir o caminho, com duas fraturas, após um acidente de bicicleta. Conta a história que, no ano de 832 um pastor avistou uma luz, como a de uma estrela, que pousava sobre um monte de onde se podia ouvir cânticos celestiais. Após uma busca, foram encontradas as ruínas da sepultura do Apóstolo São Tiago em uma minúscula capela. O rei Afonso II de Astúria ordenou que fosse construída uma nova igreja no local da aparição que ficou conhecido como CAMPUS STELLAE (Campo da Estrela), onde fica, hoje, a Catedral de Santiago de Compostela. Depois da descoberta do túmulo de São Tiago, no século IX, iniciou-se um movimento espiritual onde os cristãos, vindos de todas as partes, peregrinavam até ali em busca de penitência, absolvição e de milagres. O traçado do “camino”, desde então, foi sendo firmado e sobreviveu ao tempo e às guerras encenadas na Europa. Três vezes o caminho de Compostela Parte I Por Márcia Pavarini Quando resolvi fazer o Caminho de Santiago de Compostela parti para uma busca incansável sobre o assunto. Li diários, livros e ouvi inúmeros depoimentos. A maioria descreve as dificuldades das etapas, as paisagens e os locais históricos. Só que nenhum tira a dúvida de quem está indeciso quanto ao meio de locomoção (e esse era o meu caso): iria a pé ou de bicicleta? Primeiro pensei em fazer, a pé, os quase 800 quilômetros que vão dos Pirineus (cordilheira que separa a França da Espanha) até Santiago de Compostela. Atravessaria a Espanha de leste a oeste no paralelo 42. Mas depois, resolvi acompanhar meu marido que preferiu ir de bicicleta. Tudo parecia resolvido. Passamos meses num preparo físico intenso. Mas pintou outra dúvida: levar as bicicletas daqui, ou comprá-las na Espanha? Conversei com ciclistas de carteirinha e a maioria aconselhou-me a levá-las daqui. Foi quando outro livro sobre o assunto me fez mudar novamente de idéia. Levar as bicicletas significaria trabalho dobrado, então, decidimos comprá-las na Espanha. Finalmente embarcamos, mas se o destino iria mudar tudo, só Deus sabia… DESEMBARCANDO EM PAMPLONA As bicicletas reluziam sobre os cavaletes, na elegante bicicletaria de Don Albero. Senti-me como uma criança entrando numa loja de brinquedos. Um recorte de jornal fixado na parede dizia: “Albero faz, de bicicleta, sua 16ª. Visita a Santiago de Compostela”. E quem veio nos receber? O próprio Albero. Com um eloqüente “vengan” levou-nos ao fundo da loja apontando para as bicicletas: máquinas em alumínio, com 24 marchas, amortecedores dianteiros, assentos de gel e mais leves do que meus pensamentos. Nem acreditei quando levei a bicicleta para o Hotel. O que eu não imaginava é que, dias depois, o destino me levaria a cumprir o caminho de uma forma bem diferente da programada. 1º. Dia – Transporte das bicicletas até o início do Caminho em Saint Jean Pied de Port (região Basca francesa). 2º. Dia – Nosso marco zero foi nessa pequena vila medieval fortificada à beira do rio Nive. Saint Jean Pied de Port fica nos Pirineus, fronteira entre França e Espanha. Após trinta quilômetros de extenuante subida, estávamos em Roncesvalles, onde assistimos à celebração da missa realizada para abençoar os peregrinos que decidem enfrentar os desafios do caminho.Vencer os 745 km que separam os Pirineus de Santiago de Compostela é a principal incerteza dos que se aventuram na rota do Apóstolo. 3ª. Dia – Burguette é o primeiro povoado depois de Roncesvalles. É uma charmosa vila onde as casas levam, em sua fachada, a data da construção. A essas alturas eu já havia me acostumado com os pesados alforjes adaptados na roda traseira. No início foi mais difícil, porque manter o equilíbrio numa bicicleta leve, com peso só na roda traseira é dose para ciclista mais experiente. 4º. Dia – Pela manhã, deixamos a estrada asfaltada seguindo a indicação da seta amarela, sinalização essa que acompanha o peregrino até o seu destino final. A trilha acidentada de terra levou-nos a uma paisagem bucólica de vegetação abundante. Pequenas e frágeis pontes cobrem pequenos e tímidos riachos. A trilha foi ficando cada vez mais acidentada e pedregosa. Depois de um mútuo acordo, eu e meu marido resolvemos voltar para a estrada de asfalto.Nas imediações da cidade de Pamplona um automóvel em alta velocidade ultrapassou um veículo que seguia rente a mim.Com o deslocamento de ar perdi o equilíbrio e rolei para a valeta. O deslize custou-me a fratura do pulso e de um dedo. Fui socorrida no Hospital de Pamplona. E agora? Voltaria para casa? Nem o médico nem meu marido acreditaram quando anunciei minha decisão: só voltaria depois de receber minha compostelana, o certificado da missão totalmente cumprida. 5º. Dia – Passei dois dias em Pamplona em recuperação, o que me permitiu admirar com mais calma as riquezas medievais da cidade. Pamplona é a capital da Navarra .De origem romana, foi fundada por Pompeu. As estreitas ruelas do centro histórico levam às grandiosas edificações medievais, como a magnífica catedral gótica do século 14 e 15.No dia seguinte, estava de volta ao caminho, mas desta vez a pé! 7º.Dia – Face à nova situação, resolvi seguir o caminho a pé, enquanto meu marido continuaria de bicicleta. Mas, para que, no final do dia estivéssemos no mesmo alojamento sem entrar em conflito com a diferença de tempo entre os dois meios de locomoção, alugamos um carro de apoio. Nossa rotina diária nos fazia passar três vezes pelo mesmo trajeto, ou seja: pela manhã saíamos cedo do alojamento: ele de bicicleta e eu de carro, dirigindo, apenas, com a mão direita (porque a outra estava engessada). Assim que atingíamos a cidade que iríamos pernoitar, numa média de 25 a 30 km por dia, (o que ele fazia em 2 ou 3 horas), ele me levava de volta ao local onde havíamos iniciado o trecho daquele dia, de onde eu partia a pé. Meu percurso diário era de 6 a 8 horas de caminhada. 8º. Dia – Logroño é a capital da Rioja. Fica às margens Erbo, em um fértil vale que abriga uma região vinícola. A rotina diária das caminhada já estava estabelecida mas, os dedos da mão engessada inchavam e latejavam de dor. As dores no braço refletiam na alma. E ela já me perguntava o que eu estava fazendo ali. A essa altura, depois de dias de muita introspecção, eu já começava a ver a minha vida como um filme em câmara lenta. O consolo eram as senhoras que me ofereciam descanso em suas cadeiras nas calçadas, e aqueles que me estendiam um pedaço de pão. Entendi, então, o que levou São Tiago a enfrentar a perseguição para continuar pregando o Evangelho. |
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Fonte: Marcia Pavarini